A IGREJA SOTERRADA - Almofala

Já faz tempo, eu ouvia a história da igreja soterrada pelas areias das dunas. Uma história que parecia lenda, por tantos encantos, mistérios, significados. É a igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Almofala. Foi construída no lugar de uma capela de palha dos jesuítas, pelos começos do século 18, e atendia a um povoado de duas ruas, casas com seus moradores, gente da pesca, e muitos índios da Missan dos Tapuya Tramanbe, antiga Aldeia do Cajueiro, cheia de mares, tartarugas, dunas e ventos. Ventos poderosos, firmes, constantes, sempre na mesma direção, tocando assobios, em seu baile invisível. 

 
Cada um conta uma história. Foi a rainha louca, dona Maria I de Portugal, quem ordenou a construção da igreja na aldeia dos índios. Não foi dona Maria a Louca. Foram os jesuítas, não foram os jesuítas. Foi a Irmandade da Conceição, foram os padres. O material veio da Bahia, não veio da Bahia. Veio do porto das Oficinas em carro de boi, não veio. Foi em 1712, foi em 1758. Paredes e madeiras foram duzentos e sessenta mil-réis, não foram. Foi o padre Novais quem edificou a igreja, não foi, era jesuíta, não era. Mas estava lá, a igreja, e o povo ia se ajoelhar, se encontrar com Deus, rezar, cantar, ouvir, venerar, comungar, prometer, oferecer, esperar. Uma igreja singela, pura, alvíssima e poética. Tinha imagens de Nossa Senhora, alfaias, sinos que tocavam chamando para a missa, meu Deus, sons de sinos em velhos metais e toréns e ventos, ventos constantes...

As dunas vinham se aproximando da aldeia, em seu passo vagaroso, os grãos de areia voando, pousando adiante, mudando a cada dia os volumes. Os moradores da aldeia esperavam que o morro de areia passasse pelo lado sul da capela, e continuavam a celebrar com solenidade, e muita gente, a festa da padroeira, “as novenas que procediam eram feitas por noitários, cabendo sempre uma delas aos índios que se esmeravam em dar à sua noite o maior resplendor e realce possíveis”, disse o padre Antonio Tomás, que lá esteve desde 1892 até 1898 em visitas, rezando missa. Ele diz que os tremembés amavam a igreja, arrancavam as ervas daninhas que cresciam ao redor, varriam cuidadosamente o adro, adornavam caprichosamente as portadas de arcos com palmas de coqueiro.

Todas as manhãs o povo acordava e via as dunas mais perto, já cobrindo as paredes das casinhas de taipa, fazendo morros nos muros, chegando às cobertas de palha. Tiveram de desmontar as casas, tiraram suas poucas coisas, roupas, panos, banquetas, trempes, panelas, redes, candeeiros, barcos, depois as janelas, os paus de esteio, as vigas de carnaúba, as cercas, e se foram com as crianças, os bichos, os velhos, montar a casa em outro lugar, e lá se foram também os índios, muito sentidos com o soterramento diário da igreja. Al mohala significava, mesmo, lugar onde se mora algum tempo. Ficaram os coqueiros, cajueiros, canaviais, quintais, e as saudades. Ficou o cemitério. Ficou a igreja, não dava para desmontar. Levaram aos prantos a Senhora de Conceição, do Rosário, são José, Miguel e Benedito, em procissão e quase debaixo de cacete, porque o povo se rebelou contra a ordem do bispo. E a areia foi cobrindo a igreja, a cada dia mais, cobrindo, penetrando no interior, derrubando o teto, preenchendo altares, naves, corredores, abóbadas, até ficar apenas a ponta do coruchéu da torre mais alta, como um marco de lugar. A presença vaga de uma igreja que lembrava “a inconstância das cousas da terra.”

O povo sabia que a areia estava ali de passagem, ia seguir seu rumo, se o vento continuasse na mesma direção, e se fosse noutra direção ia passar mais depressa. Não sabiam que ia demorar uns cinquenta anos. Talvez dois, três, dez... Assim que a areia esfriava, com a descida do sol, e de madrugada quando o vento era mais brando, meninos e meninas subiam a duna com suas pequenas cuias, diz dona Expedita moradora do lugar, e desciam com as cuias cheias de areia, jogavam a areia adiante, subiam de novo e tiravam areia cuia por cuia, num trabalho de Sísifo, lindo, sentimental, evocador, cheio de fé.

E o vento continuou seu trabalho, levando adiante a areia. Depois de anos, a igreja foi reaparecendo, primeiro a torre, depois a torre menor, a cruz, a empena, as paredes, foi toda reaparecendo, mas negra, escura, de sombrio aspecto. Foi em 1942, foi em 43, foi por aí. Hoje a igreja está lá, branca e com a mesma poesia e singeleza. Tem gente que chega em Almofala e duvida, como pode ter sido aterrada a igreja, e depois desaterrada pelo vento?

"As dunas vinham se aproximando da aldeia, em seu passo vagaroso, os grãos de areia voando"

"Todas as manhãs o povo acordava e via as dunas mais perto, já cobrindo as paredes das casinhas de taipa"

"O povo sabia que a areia estava ali de passagem, ia seguir seu rumo, se o vento continuasse na mesma direção"

"Depois de anos, a igreja foi reaparecendo, primeiro a torre, depois a torre menor"


Via Cleiton Marques (Facebook)

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