Cemitério em praia de Amontada guarda lendas de povos tradicionais e pode ser engolido pelo mar

 

Com túmulos na areia da praia, cemitério em Icaraí de Amontada levanta discussões sobre rituais dos povos antigos, memórias afetivas e dinâmicas da erosão costeira. Local é excêntrico e coleciona mitos.





Pelo menos uma vez no ano, Erisvalda Sousa leva flores ao cemitério das Pedras Compridas. Ali, ela presta homenagens a três gerações de mulheres: a bisavó, a avó e a mãe foram enterradas na areia da praia, seguindo um costume das comunidades de Icaraí de Amontada

O cemitério é ameaçado pelo avanço do mar e pode sumir nas próximas décadas, com episódios em que a força das ondas já danificou túmulos e covas. O espaço também guarda memórias e lendas transmitidas de geração para geração na comunidade local.

Erisvalda recorda o dia em que o corpo da mãe foi levado até o cemitério, em 1975, quando era uma menina de nove anos. Na época, os defuntos eram transportados dentro de uma rede, e os homens fortes da comunidade se revezavam para carregar o peso por um longo cortejo.

Também conhecido como Cemitério de São Serafim, o local tem túmulos e cruzes na areia da praia. O cemitério abriga uma tradição centenária para os povos que habitam aquela região. Não há contagem de quantos corpos foram enterrados no local.

Mesmo com um cemitério oficial no centro da cidade, a faixa de praia ainda recebe corpos de pessoas que comunicam aos familiares o desejo de ter o último descanso de frente para o mar, conta Erisvalda. Ela mesma já expressou essa vontade para as duas filhas e pessoas próximas.

“Pensar em ir para lá quando chegar a minha hora me traz uma tranquilidade, uma paz. Eu sinto que vou ficar bem, vou ficar perto da minha mãe e com a paz que aquele lugar me transmite”, explica Erisvalda, hoje com 57 anos.

Nascida em Icaraí de Amontada, ela lembra de um tempo em que caminhava com as amigas adolescentes para visitar o lugar nas primeiras horas da manhã. Para Erisvalda, havia ali uma relação de respeito que está se perdendo com as gerações atuais.

A filha de Erisvalda, Melka Barros, também se preocupa em preservar o espaço que considera sagrado para a família e para as comunidades da região. Antes de partir para estudar em Portugal, ela fez questão de ir até o cemitério para visitar os antepassados e pedir uma bênção.

A estudante de 30 anos lamenta ao saber que o lugar, por vezes, é visto apenas como um ponto exótico na rota dos passeios turísticos. Ela relata episódios de pessoas tirando fotos com cerveja na mão ou deitadas em algum túmulo.

“Isso é muito triste, é a nossa espiritualidade sendo comercializada dentro de um pacote turístico. E isso é comum, quem vem de fora não reconhece aquilo como espaço sagrado. As pessoas não entrariam com cerveja em uma igreja”, exemplifica Melka.

No início deste ano, Melka publicou seu primeiro livro de ficção inspirado nas vivências dos povos tradicionais do mar.

Em “Memórias da Travessia”, o protagonista é um náufrago que está enterrado no cemitério da vila dos pescadores onde aportou. Uma história que lembra a lenda do homem evocado até hoje entre os moradores como São Serafim.

Cadáver em um saco, primeiro corpo enterrado

1888 é o ano atribuído à origem do cemitério. Tudo teria começado quando um cadáver desconhecido encalhou na praia dentro de um saco. Os moradores decidiram fazer o sepultamento ali perto.

Tempos depois, um dos membros da comunidade sonhou que o nome do cadáver era Serafim. Entre os locais, ele começou a despertar uma devoção especial, sendo também conhecido como "Sarafim".

“Daí em diante, as pessoas começaram a fazer promessas e votos, ao ponto de aumentar o número de pessoas enterradas lá, vindo de toda a região de Itapipoca, pois antes Icaraí pertencia a este município”, conta Jairo Alves, historiador e professor na rede municipal de Amontada.

Não se sabe quantos corpos estão enterrados no local. Isso porque nem todos ganharam inscrições e alguns foram colocados acima de outros cadáveres ao longo dos anos.

A professora Isneilânia Carneiro, de 38 anos, tem parentes sepultados por lá, mas não sabe localizar os pontos exatos. São tios, primos e tios-avós, tendo inclusive familiares que ela não conheceu. Pelo vínculo e por curiosidade sobre o lugar, ela costuma visitar o cemitério.

“As pessoas fazem promessas para o Serafim, elas têm uma fé muito grande. E elas comentam que o túmulo dele era o único que a maré não tinha derrubado. Teria uma espécie de encantamento”, partilha.

Há cerca de um mês, ela percebeu que a cruz do São Serafim estava parcialmente danificada, mas ainda assim recebia homenagens: terços, fitas e oferendas em forma de ex-votos (objeto, normalmente esculpido em madeira, para simbolizar uma graça alcançada ou presente dedicado a um santo).

Mesmo com as ameaças do avanço do mar no processo de erosão costeira (ver abaixo), Isneilânia considera importante que o espaço seja bem preservado e sinalizado.

“É a história da nossa região, das comunidades. Ele [o cemitério] continua lá sem uma identificação, sofrendo a destruição com o tempo”, comenta. Ela ressalta que os distritos próximos, como Santarém e Pernambuquinho, ainda têm uma relação ativa com o espaço.

Ritos dos povos originários

Considerado um lugar excêntrico para a maioria, o cemitério de Icaraí de Amontada não é o único do litoral brasileiro. Os ritos fúnebres nas areias da praia têm práticas que remontam às populações que vivem nestes territórios há milênios.

Um indício semelhante é a presença dos sambaquis no país, aponta a bióloga Alanna Carneiro. Os sambaquis são colinas artificiais à beira do mar formadas pelo aglomerado de conchas, ossos de peixes, restos de fogueira e corpos das pessoas mortas das comunidades que viveram há mais de 8 mil anos no Brasil.

Eles estão espalhados pelas praias brasileiras, como no Pará, no Maranhão, no Rio de Janeiro e em Santa Catarina.

“O nosso litoral é muito rico de artefatos e sítios arqueológicos que são invisibilizados. Essas histórias e essas comunidades vão se perdendo. Existe uma relação com a cultura indígena e ancestral, dos povos caiçaras que tinham o litoral como acampamento”, contextualiza Alanna.

A bióloga já admirava o cemitério de Pedras Compridas. Era o ponto para onde caminhava a partir do curral de pesca da avó. Em conversas recentes com a família, descobriu que também tem tios-avós sepultados naquele lugar.

Alanna coordena projetos na EcoMaretório, instituição não-governamental que reúne comunidades na região de Amontada e Itarema em busca de justiça socioambiental. O coletivo atua em defesa dos territórios das comunidades pesqueiras, marisqueiras, caiçaras e ribeirinhas.

Uma das propostas em fase inicial de articulações pede o tombamento do cemitério. A ideia é que o local seja preservado e tenha uma gestão, prevendo inclusive formas para que o turismo seja aliado na perpetuação da memória.

“Seria interessante repassar essa história para que ela não suma do imaginário de pertencimento da comunidade e para reconhecer os povos do litoral. Mas justamente a falta de uma regulamentação, gestão e planejamento do turismo causa conflitos. Poderia haver uma rota ecológica, uma cerca que preservasse (o cemitério), um tombamento para resgate dessa memória como deve ser”, defende.

Manutenção do cemitério

Os membros das comunidades locais apontam ideias para preservar o cemitério de Pedras Compridas. A ausência de identificação e de um ordenamento por parte do poder público é reclamação comum entre os locais.

“Não tem nenhuma placa falando da importância de não pisar em alguns locais. É preciso demarcar uma zona de amortecimento onde os carros podem passar ou não. Teoricamente, eles nem poderiam passar ali”, lembra Melka Barros.

Em nota, a Prefeitura de Amontada afirma que o cemitério é privado e tem como curador a comunidade local, que é responsável pela manutenção.

“Como o município não detém gerência sobre o cemitério, por estar aos cuidados da associação dos moradores, o poder executivo entrará em contato com a associação curadora do local para requerer esclarecimentos sobre a atual situação do local e solicitar que o cemitério passe a ser público”, diz a nota.

Ainda de acordo com a gestão municipal, um pedido de municipalização do cemitério deve ser enviado à Câmara Municipal caso a comunidade aceite. A medida permitiria o investimento de recursos para manter o local.

Sobre o transporte de veículos nas proximidades do cemitério, a gestão responde que não pode estabelecer regras em área da União.

“As providências estão sendo tomadas no sentido de dialogar com a associação responsável pela ocupação do cemitério e com a Secretaria do Patrimônio da União”, complementa a gestão em comunicado.

Os desafios com o avanço do mar

As comunidades tradicionais enfrentam desafios para permanecer no litoral com suas práticas culturais e atividades rotineiras. Alguns deles são a especulação imobiliária e o turismo de massa, que ameaçam espaços físicos e simbólicos.

Uma das queixas dos locais fala dos trechos da praia que até pouco tempo eram livres para as crianças das comunidades, sendo hoje ocupados com cadeiras, redes de vôlei e atividades para lazer dos turistas.

Estas tensões podem escapar ao olhar dos visitantes. No entanto, o avanço do mar no cemitério de Pedras Compridas dá evidências mais fortes dos efeitos de uma ocupação acentuada do litoral.

A paisagem é de um cemitério pouco a pouco engolido pelas águas. Ele já teve ossadas levadas para o mar, túmulos danificados e várias transferências da cruz de São Serafim para mais longe da ação das marés.

Os sinais da erosão costeira já estavam claros há pelo menos 30 anos, quando o pesquisador Jeovah Meireles, professor de Geografia na Universidade Federal do Ceará (UFC), visitou Icaraí de Amontada. A dinâmica envolve ações que vão muito além daquele trecho: a erosão acontece onde a praia perde sedimentos e não tem a mesma quantidade reposta.

“Se eu soltar um grãozinho de areia ali em qualquer praia de Caucaia, os ventos alísios e a direção de chegada das ondas na linha de praia vão sempre conduzindo esse grãozinho de areia na direção de Icaraí de Amontada. Se você caminhar mais com ele, ele vai bater lá nos Lençóis Maranhenses”, ensina.

O cemitério está situado entre pontais, trechos que tiveram maior resistência às mudanças do nível do mar nas eras glaciais e interglaciais. Sem estar no pontal, a área do cemitério não é tão eficiente na resposta aos processos de erosão, conforme o pesquisador.

A erosão poderia ser ainda mais intensa no cemitério. Mas ele ainda é protegido pelas dunas móveis, que se movimentam na região dos pontais e amortecem naturalmente o processo erosivo. As intervenções humanas na costa, como novas edificações, podem alterar essas relações.

“A erosão está sendo progressiva, mais intensa. As mudanças climáticas, com os indicadores globais de subida do nível do mar, se somam às condições mais locais, na forma de ocupar essa zona costeira que não leva em conta disponibilizar esse volume de sedimentos para minimizar os processos erosivos”.

De acordo com Jeovah Meireles, é provável que o cemitério seja mais afetado e chegue a ser consumido no futuro. Ele aponta que o avanço do mar já tem afetado casas construídas em Icaraí de Amontada. Outras praias impactadas no estado são Caponga, Icaraí e Icapuí.

Outros locais históricos

Também em Icaraí de Amontada, um outro local teve procedimentos iniciados para registro no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (CSNA), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

É o Cascudo do Fogo, considerado um território de paleoduna, formação também conhecida por duna fóssil ou duna consolidada. O nome foi dado em alusão ao hábito antigo de acender tochas para orientar pescadores perdidos no mar.

Uma das praias vizinhas também tem um cemitério nas areias. O local fica à esquerda do portal de madeira que dá as boas-vindas aos visitantes da praia da Barra de Moitas, em Amontada.

São túmulos de pedras e tijolos que se misturam à vegetação crescente na duna. O cemitério da Almada ou da “Rumada” também guarda histórias centenárias.

É lá onde descansa o bisavô de Mateus Sousa, morador de Barra de Moitas. Com a avó, ele também soube que ali foram sepultadas também três tias que morreram ainda pequenas.

“Os mais antigos acreditavam que a praia era sagrada. E, na verdade, toda a terra é sagrada. E o pessoal faz uso desse território para enterrar seus ancestrais”, conta Mateus.

Ele reconta as histórias transmitidas pela avó, que hoje tem 71 anos e chegou para morar na região ainda criança. “Quando ela chegou aqui, esse cemitério já existia”, relata.

Há cerca de dois meses, os moradores da comunidade se uniram para fazer intervenções no cemitério. O lugar agora conta com uma demarcação de pedras, placa com identificação portal de madeira e orientações para que as pessoas não joguem lixo no lugar.

O trabalho voluntário resultou em um espaço que agora pode ser mais facilmente reconhecido pelos visitantes daquele trecho de praia.


G1

 

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